Adaptamo-nos tão perfeitamente uma à rotina da outra que eu chegava a indagar por que havia demorado tanto para ter um bebê.
Não que Sara não fosse uma criança agitada que requeresse toda a atenção de um adulto enquanto percorria seu vasto caminho de descobertas. Estes momentos, inclusive, constantemente me faziam sentir um desgaste físico e mental tão absurdo que eu acreditava não ser capaz de prosseguir sozinha. Mas, então, ela se aninhava em meu colo procurando o conforto necessário após uma jornada de grandiosas conquistas e eu me sentia milagrosamente renovada. Pronta para lhe servir por toda uma vida. Ou várias.
Foi em uma destas ocasiões, logo que Sara adormeceu em meu colo e eu a levei até a cama e ali permaneci observando-a, como de costume, que subitamente decifrei aquela sensação que me perseguia sempre neste momento, desde o primeiro dia.
Sara dormia serenamente. Quase sem nenhum movimento, apenas arfando muito lentamente o peito, recolhendo somente o ar indispensável para circular em seu corpinho.
E ali estava eu, mais uma vez hipnotizada por sua imagem angelical...
Claro! As asas!
Nitidamente eu vislumbrava um par de asas que saiam de suas costas e a envolviam de forma acolhedora.
A imagem impactante me fez entender agora o que me impressionava ao observá-la dormir. As asas sempre estiveram ali.
As lágrimas começaram a descer lentamente por meu rosto e não eram lágrimas de medo ou de dor, mas de surpresa e, não posso negar, de preocupação.
Apesar de a imagem representar uma beleza absurda, eu não conseguia ainda entender o que aquilo significava.
A revelação espontânea d' As asas ocultas de Sara me deixou completamente tonta. Tudo ao redor de mim girava e, de repente, o sussurro da TV ligada na sala foi sufocado por um choro de criança que começou suave mas só me despertou do transe quando já era frenético.
Sem que eu fizesse a menor idéia de quanto tempo havia se passado entre a visão das asas e este momento, Sara chorava compulsivamente em minha frente, pedindo colo.
Inclinei-me para lhe retirar da cama e então lembrei do que havia me atordoado.
Procurei, desesperada, por algum sinal daquilo que eu acabara de ver.
Mas na minha frente estava apenas uma criança normal. Sem nenhum vestígio de asas.


Junto com a manta eu havia comprado um sling - uma faixa de pano comprida, com 2 argolas fixas à uma das extremidades que, ajustada ao corpo, transporta uma criança de 0 a 3 anos, segundo explicação da vendedora - e foi assim, com minha filha confortavelmente presa ao meu corpo, que desempenhei as mais diversas tarefas que aguardavam por meu retorno.
Ao perceber que Sara adormecera, concluí que precisava abrir mão de minha necessidade de tê-la comigo e a acomodei em minha cama de casal, cercada por gigantes travesseiros por todos os lados, embora ela ainda não coordenasse sequer o movimento das mãos.
Aproveitei o momento para realizar aquelas tarefas domésticas impossíveis de se concluir com um bebê grudado ao peito e depois voltei correndo para o quarto pois, apesar de ela ainda dormir, eu sentia uma falta tão devastadora dela que não conseguia permanecer mais que alguns minutos sem sentir seu cheiro.
Não me aproximei muito, pois varrer a casa tinha me feito suar e a poeira levantada pela vassoura ainda estava grudada em minha pele.
Neste instante percebi que não havia naquele apartamento uma banheirinha de bebê nem nada que pudesse ser utilizado para este fim. Fiquei realmente preocupada, mas a visão de Sara adormecida me invadiu de tal forma que não consegui ordenar mais nenhum pensamento.
Fiquei ali, ao pé da cama, observando-a dormir tranquilamente por algum tempo. Existia alguma coisa tão mágica naquela visão que eu não conseguia sequer me mexer. Percebi que ela não se parecia com nada que eu já tivesse visto e passei a explorar cada centímetro daquela imagem. Cada parte do seu minúsculo corpinho parecia perfeita quando contemplada individualmente, mas a visão do todo era de alguma forma perturbadora. Não que fosse desagradável mas, por alguma razão, era extremamente inquietante.
Então ela primeiro movimentou levemente as perninhas, depois abriu os olhos e mesmo sem se voltar em minha direção suspirou tranquila com a certeza de que eu estava ali.
Lembrei do banho.
Fui até o banheiro, tirei minhas roupas, liguei o chuveiro, ajeitei uma toalha de banho no chão e voltei ao quarto para despir minha filha. Aconchegando-a em meus braços, a levei até o chuveiro onde, assim, bem próxima ao meu corpo, Sara tomou seu primeiro banho fora do hospital.
Dias depois, ao ter conhecimento da falta de uma banheirinha em nosso lar, uma querida colega de trabalho nos presenteou com um modelo ao mesmo tempo bonito, confortável e prático.
Mas nunca a utilizamos.


Foi ao chegarmos em casa, logo na primeira noite, que percebi aquilo que pelo resto de meus dias seria para mim razão de encanto e tormento, simultaneamente.
A kitinete abandonada desde o rompimento da bolsa d'água não era exatamente aquilo que se pode chamar de "ambiente acolhedor" para um bebê. Mas Sara parecia não se importar e eu, tampouco.
Após alguns dias tendo como lar, hora o gélido corredor do hospital, hora o interior nada confortável de um carro popular, eu me senti cruzando as portas do paraíso ao rever aquelas paredes brancas, levemente encardidas pela ação do tempo, abarrotadas de figuras que, se não importavam em nenhum valor econômico, mas narravam fielmente uma parte considerável da minha história.
Sara não demonstrou nenhuma reação de ter percebido, naquele primeiro instante, a disparidade exposta em figuras como Audrey Hepburn - elegantemente adornada como "Bonequinha de Luxo" - e o revolucionário Che Guevara acomodados lado a lado em uma incômoda harmonia.
Mas, sem dúvida, os anos de convívio forçado com a mãe, a que toda criança (em situação padrão) é submetida, seriam suficientes para que ela elaborasse sua própria teoria sobre a rebeldia que eu vinha tentando, com certo sucesso, domar desde meus primeiros anos de vida.
Agora eu preciso lhe esclarecer que, se exponho aqui aspectos tão íntimos de minha própria existência, não é por vaidade, nem orgulho ou mesmo por necessidade da absolvição alheia. Faço isso apenas pela importância que a consciência desta minha batalha emocional gerou em Sara.
Mas, tenha paciência, pois chegará a hora de falarmos sobre este assunto.
Voltemos ao pequeno apartamento e, por favor, não se assuste e nem mesmo me condene, mas preciso confessar que ali não havia absolutamente nada que denunciasse a espera por uma criança.
Talvez pelo espaço reduzido ou mesmo pela desorganização que sempre me acompanhou, os mais variados objetos, representassem eles algum perigo ou não, permaneciam espalhados pelo chão ou amontoados sobre a mesinha de centro entre o sofá e a TV.
E o único quarto do imóvel se resumia a um guarda-roupas mais forte do que bonito e uma cama de casal bastante simples, mas valorizada por um confortável colchão.
Não poderia lhe afirmar com sinceridade que a ausência dos objetos fundamentais ao desenvolvimento de um bebê era resultado da falta de espaço da minha casa. Como eu já lhe confessei, realmente não estava preparada para me separar de Sara. A simples idéia de tê-la arrancada do meu ventre representava para mim uma agressão que me privava de qualquer vontade de preparar sua chegada ao universo exterior.
Mas naquele instante, ao abrir a porta por de traz do número 204 do antigo edifício em frente à praça, e observar meus velhos ídolos cumprimentando a mim e a filha que eu trazia embrulhada ao colo, fui invadida pela certeza de que nem a beleza representada por Audrey, nem a luta por ideais revolucionários impressa na figura de Che, jamais teriam um lugar tão destacado em minha vida quanto aquele frágil ser que recheava a recém comprada manta que eu verdadeiramente lamentava não estar impregnada por histórias que remontam a várias gerações.
Só então pude sentir falta da tradição que invade a todas as famílias, tenham elas consciência ou não.
Apenas naquele momento, quando Sara deixava de fazer parte de mim para pertencer ao mundo lamentei profundamente ter abdicado - há muitos anos - da convivência familiar, assim como de suas memórias, para seguir em busca de algo que eu jamais soubera identificar.
Mas Sara estava ali e eu já não precisava procurar por mais nada.


A madrugada em que Sara nasceu estava carregada de um ar especial.
O céu tinha um brilho distinto, mas a lua, enciumada, preferiu se esconder. Pude notar estas singularidades porque minha pequena filha veio ao mundo de forma tão serena que não me infligiu nenhuma dor pois, apesar de eu ainda não me considerar disposta a esta primeira separação, Sara já se encontrava pronta para o mundo.
Contudo, nasceu chorando, como todos os bebês, e tinha o peso abaixo da média devido ao nascimento prematuro, o que a levou a permanecer três torturantes dias internada na Unidade de Terapia Intensiva neonatal do Hospital São Gabriel.
Durante estes dias eu me revezava entre a vigília ao lado de sua incubadora e o banco do carro, que eu deitava até o máximo possível e transformava em cama.
Permanecia ao seu lado por todos os segundos que a equipe médica me permitia e então, quando finalmente era expulsa mediante explicações de que eu precisava ir para casa, dormir, me alimentar e tomar um banho, saía do Hospital, ia até o carro, sentava-me no banco do motorista, mas não conseguia virar a chave para dar partida no motor.
Mesmo ouvindo repetidamente dos médicos que a internação de Sara não passava de um procedimento padrão, que ela vinha dia a dia ganhando peso e logo poderia ir para casa comigo, eu não conseguia me afastar mais que alguns metros dela.
E então, exausta física e emocionalmente, eu reclinava o banco do carro e num choro quase mudo adormecia.
Comia apenas aquilo que as enfermeiras, ao perceberem os danos que o estado lamentável de preocupação vinha me causando, me obrigavam sob ameaças da minha internação.
Naquela época, eu já não me lembrava de como rezar e no desespero por ter minha filha ao meu lado, tentava a todo o momento me comunicar com seu espírito encorajando-o a fortalecer seu pequeno corpinho o mais rápido possível.
Quando, enfim, Sara recebeu alta e eu pude levá-la para casa, me encontrava tão fraca que, pela primeira de muitas vezes, tive a sensação de que era ela quem cuidava de mim.


Em primeiro lugar, para que eu possa iniciar o meu relato, por favor, esqueça tudo que você pensa que sabe sobre seres extraordinários.
Apague vampiros e lobisomens, ou qualquer outro tipo de assombração, da sua mente. Mas livre-se também dos anjos e das fadas.
Se é que, a esta altura da vida, você ainda acredita nestas aberrações.
Agora, sim, podemos começar.
O meu nome não interessa, você precisa apenas saber que eu sou a "mãe" e não vou me estender agora na explicação de como é difícil sê-la. Teremos bastante tempo para isso.
(Digo isso acreditando em meu poder narrativo, na esperança de que ele lhe instigue a conhecer minha história até o fim)
Você acredita em destino?
Eu não acreditava. Mas hoje, depois de tudo que tenho vivenciado, sou obrigada a rever minhas crenças e posso lhe garantir que todo indivíduo, a partir do momento que é apresentado à vida, tem uma trajetória pré-estabelecida. Claro que este caminho pode ser alterado, mas invariavelmente o ponto final acaba sendo aquele ao qual fomos predestinados.
Não duvide.
Hoje eu vejo que existem pessoas que nascem com missões mais , digamos, abrangentes, mesmo que o verdadeiro significado destas determinadas missões não possa ser percebido de imediato.
Mas que importância tem isto?
Bom, minha história é sobre uma destas pessoas iluminadas.

Sinta-se à vontade.