Eu nem insistia mais para que Sara passasse um batom e também já desistira de comprar-lhe enfeites para o cabelo, pois ela tinha uma caixa cheia destes, alguns ainda com a etiqueta e a grande maioria sem nunca ter saída pela porta.

Sentia-me derrotada, frustrada, vencida pela excentricidade de Sara.

Desistira de preparar-lhe um enxoval e já pensava na aquisição de um cachorrinho para me fazer companhia e preencher meu sonho de netos quando Gustavo mudou-se com a família para o nosso prédio.

Sua mãe me parecia muito simpática e o pai, apesar de simples, demonstrava dar valor ao que era certo.

Tudo bem. Os dois eram bastante jovens. Quem me lê talvez pense que a idade de Sara fosse avançada o suficiente para enfraquecer minha esperança em vê-la casada.

Não era. O que me desestimulava em sonhar era seu comportamento, não sua idade.

Mas a chegada de Gustavo trouxe para mim a sensação de ser tocada por uma agradável brisa no meio de uma tarde de calor infernal.

Em outras palavras: um alívio, uma esperança.

Ele era tão bonito, tão gentil, e me parecia tão inteligente que Sara não poderia resistir.

Além disso, o tom bastante claro de sua pele deixava transparecer o rubor que o dominava sempre que Sara estava por perto.

Claro que eu conhecia aquele sinal. Apesar de fazer muito tempo que não me deparava com nada assim, eu podia apostar que aquele menino estava interessado em Sara.

Era tão fofo.

Sempre educado, procurava disfarçar a excitação ao ver Sara direcionando a atenção para mim. Cumprimentava-me muito sorridente e carregava minhas compras quando nos encontrava-mos na entrada do prédio.

No inicio Sara não demonstrou nenhum sentimento em relação ao novo vizinho, mas, ao perceber as intenções do garoto, que eram cada vez mais evidentes e, principalmente, ao perceber as minhas intenções em relação ao futuro dos dois, ela foi se tornando cada vez mais impaciente e qualquer coisa que viesse do pobre Gustavo passou a irritá-la.



Por insistência minha, Sara até se esforçava em sair de casa algumas vezes com uma outra vizinha nossa, do andar de cima. Uma menina sensível e inteligente o suficiente para prender a atenção de minha filha por alguns momentos.

Daniela também não era grande adepta de voltinhas na praça, mas, talvez pela obstinação que sua mãe compartilhava comigo em ver uma filha adolescente se entregar a programas de adolescentes, vez ou outra batia lá em casa a procura de Sara e conseguia arrancá-la da frente do computador.

Claro que, nestas horas, Sara sempre se despedia de mim com um olhar de quem faz ao outro um grande favor e não se contentava em deixar isto subentendido. Ao voltar para casa me saudava com frases do tipo:

- E aí? Está satisfeita agora?

Ou:

- Pronto, mãe? Perdi uma tarde inteira. Está feliz?

Eu ignorava suas provocações na esperança de perceber em seus olhos um brilho especial na volta de um destes passeios.

Mesmo que a vida tenha me ensinado a não depositar grandes expectativas no amor, eu ainda acreditava que um belo rapaz traria minha filha à normalidade.

Sara não era uma filha má. Nem, tampouco, agressiva.

Talvez eu tenha lhe passado a impressão de que ela fosse estúpida comigo. Desculpe, mas não é nada disso.

Ela apenas tinha um gênio forte e, por isso, não conseguia manter dentro da cabeça os pensamentos. Quando algo a incomodava demais, nem mesmo a educação conseguia conservar sua boca fechada. Ela até se esforçava para dar um ar mais polido às palavras, tornando-as menos agressivas, mas nem sempre obtinha êxito.

E a minha persistência em obrigá-la a se divertir como as outras meninas era algo que a aborrecia demais. Sempre que eu parecia vencer uma batalha e ela cedia a algum programa padrão, Sara se fechava ainda mais em seu mundo extraordinário e me excluía da oportunidade de compartilhá-lo.

Na verdade, ela até fez algumas tentativas de dividir comigo seus interesses, mas, frustrada diante da minha incompreensão perante a importância de impedir a pesca de baleias por japoneses, desistiu.

Eu também, embora não pudesse admitir nem para mim mesma, estava desistindo.

 

 

 



Sara tornou-se uma adolescente um pouco diferente daquilo que é considerado normal. Não pelas asas, que permaneceram ocultas, tornando-se visíveis ainda apenas para mim, durante algumas noites, enquanto ela dormia mais serenamente. Era seu comportamento durante o dia que me intrigava. Eu fingia achar tudo normal. Quando questionada, justificava suas atitudes alegando serem fruto de sua personalidade forte, mas, no fundo, me preocupava observar minha filha manter-se cada vez mais distante de meninas e meninos da sua idade.
Nessa época, sem imaginar o efeito ainda mais devastador que isto causaria, comprei para Sara um computador. Sonhei que ele facilitaria sua comunicação com os colegas e a tornaria um pouco mais semelhante ao resto da turma.
Burrice a minha.
Nem o melhor computador do mundo pode aproximar alguém com asas (ainda que este alguém não tenha, sequer, consciência das mesmas) de adolescentes que se animam em passar a tarde no shopping olhando vitrines e investem tempo em sites que tem como única informação a roupa das estrelas no tapete vermelho.
O tiro saiu pela culatra e Sara aproveitou o computador pra se distanciar ainda mais das pessoas que a cercavam. Inclusive, de mim.
Realmente não posso acusá-la de ser grosseira com as pessoas, pois ela havia absorvido a educação que recebera e tratava a todos com a gentileza necessária. E só.
Sara não demonstrava apego por nada que a rodeava. Nunca telefonava a nenhuma colega de classe ou mantinha diálogos no MSN com os garotos da escola e do bairro. Não se interessava pela vida das vizinhas. Não assistia às novelas. Não ia à igreja. Não fazia parte de nenhum grupo e nem parecia se importar comigo.
Nunca lhe manifestei minha tristeza perante sua indiferença porque temia que isto aumentasse ainda mais a distancia entre nós. Além disso, julgava ser apenas uma fase que se extinguiria a medida que minha filha amadurecesse.
Ao ser apresentada por Tio Chico às mazelas da África, Sara passou a dedicar boa parte de seu tempo a pesquisar informações sobre o assunto na internet e, mais tarde, formulava soluções elaboradas para tal problema. Depois foi a vez da Faixa de Gaza, do Afeganistão, da Geórgia, na região da Ossétia do Sul e até a independência do povo basco na Espanha.
Eu não posso dizer que vibrava com seu interesse por estes assuntos como teria feito ao observá-la descobrir-se apaixonada por qualquer um dos simpáticos garotos de sua turma na escola, mas o tempo me conformou quanto ao comportamento diferenciado de Sara ao ponto de eu passar a considerá-la apenas excêntrica.
Afinal, para quem havia vislumbrado asas em seu pequeno bebê, perceber no mesmo a falta de hábitos condizentes com sua idade não era nada tão absurdo assim.


Se asas são elementos que podem ser cultivados, então nosso carismático vizinho, sem dúvidas, seria considerado um dedicado agricultor, pois com zelo e criatividade regou as asas de minha filha durante o tempo que lhe foi permitido.
Primeiro, ele semeou em Sara o desejo de conhecer o mundo contando-lhe histórias dignas de Sherazade, tal qual um condenado que confia a própria vida ao seu poder de persuadir através de relatos encantadores. Suas narrativas eram sempre ricas em detalhes que, não fosse ele um analfabeto digital, eu juraria provenientes dos mais elaborados tours pelo Google. Afinal, como poderia aquele singelo senhor conhecer detalhes sobre destinos mais antagônicos que a romântica Gramado, no alto da Serra Gaúcha, a caliente Cancun, na costa mexicana, que além do mar azul turquesa oferece aos visitantes os mistérios da civilização Maia ou a anárquica Christiania, território independente no subúrbio da capital dinamarquesa?
Por tudo isso, mais sua paciência e dedicação, ele exercia sobre Sara uma influência cativante, que eu, ao perceber que não possuía armas para competir, acabei utilizando a meu favor. Era Tio Chico que me socorria sempre que minhas palavras não eram satisfatórias para convencer aquela criança de que uma blusa tão curta não era conveniente aos primeiros dias de junho ou qualquer outra coisa, assim como a adolescente que ela se tornou só cedia aos argumentos do vizinho-amigo-ídolo na hora de abaixar o volume do som e dedicar mais algum tempo às apostilas.
Com o tempo desisti do meu ciúme e fiz dele um aliado.
Depois que alguns anos se passaram e a compreensão de Sara cresceu inversamente ao comprimento de suas saias, o cultivador de asas do apartamento ao lado sentiu-se forte o suficiente para aduba-la com ideais em graus mais altos.
A desigualdade entre as classes sociais e todos os males provenientes dela eram seu tema recorrente.
Sara se emocionava profundamente sempre que Tio Chico decidia lhe oferecer descrições das terríveis possibilidades que decorriam da ganância humana. Nestas ocasiões ela comumente sofria de ataques de gastrite ou fortes enxaquecas.
Era impressionante observar como aquela jovem que, na maioria das vezes se mostrava indiferente aos dramas de vizinhas ou amigas, se transmutava em uma ouvinte perturbada diante da descrição de dores tão distantes do seu mundo.
Eu ainda não fazia idéia que a adversidade que dominava suas emoções era efeito colateral de suas asas, pois estas a obrigavam a sentir as injustiças sofridas pelos homens como facas em sua alma.


Quando chegou a hora de Sara entrar para a escola eu me senti plenamente segura em matriculá-la em um colégio que valorizasse a educação cristã, afinal esta era uma questão que me preocupava desde o seu nascimento.
Eu não era dada a freqüentar igrejas e os anos haviam apagado as lembranças de orações que me foram tão caras na infância. Para ser sincera, a religião não fazia parte da minha vida embora ainda permeasse meus temores.
Não me parecia certo que uma criança pudesse crescer sem a inserção de valores religiosos, ainda que a um adulto fosse perfeitamente possível viver distante dos mesmos. Eu realmente acreditava que devia oportunizar a Sara o aprendizado das histórias de Cristo, pois, somente assim, ela seria capaz de fazer escolhas corretas em sua vida adulta.
Isso, para mim, estava muito claro.
Se você já ouviu falar que “os vizinhos são os nossos parentes mais próximos”, talvez entenda como Tio Chico acabou sendo envolvido (na verdade, se envolvendo) na questão da ida de Sara à escola.
Eu já havia feito uma primeira visita ao Colégio Santo Antonio dos Anjos e, numa noite, quando meu vizinho bateu à porta para nos oferecer um pedaço de queijo colonial com o qual um amigo o presenteara, estava com a documentação necessária para a matrícula espalhada sobre a mesa, o que, naturalmente, lhe chamou a atenção.
Talvez por se sentir um pouco responsável pela educação de sua pequena companheira de histórias, Tio Chico se permitiu uma indiscrição (coisa que lhe era incomum) e me questionou sobre a escolha da instituição religiosa de ensino.
Dei-lhe todas as devidas explicações com certo ar de satisfação, pois me sentia plenamente segura quanto à escolha.
Ele me pediu licença, puxou uma cadeira da pequena mesa que ficava na sala, sentou-se e me pediu que fizesse o mesmo.
Desculpou-se pela intromissão e passou a hora seguinte argumentando sobre o caso.
Segundo ele, Sara precisava crescer exposta a valores morais rígidos, porem razoáveis. Para a formação de seu caráter era imprescindível o contato com questões éticas bem definidas. Ela precisava de orientação quanto a bons costumes e aspectos saudáveis de seu desenvolvimento.
Sara precisava aprender o que era certo e o que era errado, mas não tinha necessidade de ser exposta a um conjunto de crenças antes mesmo que pudesse compreender seu significado.
Tio Chico me fez enxergar que, para ser uma boa mãe, para desempenhar o meu papel no desenvolvimento de sua personalidade, eu deveria apenas me incumbir de orientar sua conduta entre o bem e o mal (ainda que esta distinção não fosse sempre muito clara), deixando para mais tarde suas escolhas religiosas, que aflorariam melhor se livres de qualquer preconceito.
Foi assim que dispensei a vaga no conceituado colégio cristão e matriculei minha filha em uma escola sem nenhuma orientação religiosa.


A carência de pai foi suprida por uma figura apaixonante que surgiu em nossas vidas quase como um presente que alguém deixa à porta.
Tio Chico era um senhor que aparentava ter uns 60 e poucos anos, embora nunca nos tenha revelado sua verdadeira idade.
Mudou-se para o apartamento ao lado quando Sara estava prestes a completar 5 anos. Bem a tempo de me salvar de sua curiosidade que vinha crescendo e me surpreendendo tal qual um rolo compressor.
Ao perceber meu aborrecimento diante de algumas de suas intermináveis dúvidas e suposições, Sara passou a direcionar a Tio Chico a maioria de suas perguntas, com exceção daquelas que diziam respeito apenas às mulheres e ela, instintivamente, preferia que fossem esclarecidas por mim.
E o nosso sábio e experiente vizinho nunca a decepcionava. Tratava a todos os questionamentos de Sara com respeito e seriedade. Fosse uma pergunta sobre o Lobo Mau (que ela nunca admitiu ter engolido a Vovozinha sem mastigar, a tolerando viva em sua barriga), fosse sobre a crise no Oriente Médio (que os jornais noticiavam incessantemente) ou sobre o fenômeno físico que transformava a água em gelo, lhe permitindo voltar a ser água, Tio Chico brindava à sua pequena ouvinte com uma explicação perfeitamente aceitável para sua idade, nunca estando aquém de sua compreensão.
Foi ele quem explicou para Sara quem havia sido aquele homem cuja face estampada em um quadro enfeitava a parede de nosso apartamento e a expressão, embora endurecida pela barba espessa, irradiava a possibilidade da realização do sonho de um mundo mais justo.
Foi ele quem lhe ensinou que, apesar de que em alguns lugares do mundo às mulheres só fosse permitido andar às sombras dos homens, todos são exatamente iguais, mesmo que alguns vistam roupas melhores e tenham mais oportunidades.
Foi ele quem lhe mostrou que a cor de um ser humano não faz dele alguém mais, ou menos, especial.
Acredito que, se Tio Chico não tivesse cruzado nossos caminhos, eu talvez desse conta de passar para minha filha a importância destes mesmos valores.
Mas a necessidade de dedicar à luta diária por meios que permitissem nosso sustento grande parte de minha energia, afetava negativamente meu humor e, confesso, muito provavelmente privaria Sara de explicações tão ricas e profundamente positivas na construção de sua personalidade.
Foi Tio Chico, inclusive, quem lhe incutiu a necessidade de buscar em sua essência aquilo que, de fato, lhe fosse importante e, então, dedicar a vida a realizar tal objetivo.
Eu sentia certo ciúme ao perceber o fortalecimento daquela relação.
Afinal, por mais carismático e inteligente que fosse o senhor da porta ao lado era praticamente um estranho. Pouco sabíamos sobre sua vida, além de que perdera a esposa devido a um câncer e não tinha filhos.
Quando perguntávamos sobre sua profissão, Tio Chico nos mandava escolher a que preferíssemos, e se divertia ao explicar que já havia realizado quase todos os trabalhos possíveis nesta vida.
Aquilo encantava Sara ainda mais, exatamente na mesma medida que começava a me afligir.


Sara cresceu como qualquer criança normal.
Exceto por sua curiosidade, que ultrapassava o limite daquilo que podia ser considerado saudável por alguém com o mínimo de bom senso e lhe rendeu uma série de cicatrizes que ela exibia com o orgulho de um soldado.
Logo em seus primeiros anos de vida fui forçada a concluir que o par de asas que a adornava durante o sono não seria útil para mantê-la fora de perigo.
Meu anjo tinha pouco menos de um aninho quando a deixei dormindo em minha cama, cercada por travesseiros altos e fofos o suficiente para, conforme o que eu acreditava, representar-lhe uma barreira de montes instransponíveis.
Eu estava na cozinha, a poucos metros de distância do quarto (ou de qualquer outra peça da kitinete), quando fui surpreendida por um barulho que, embora pudesse passar despercebido por um ouvido menos apurado do que o de uma mãe, para mim soou como um estrondo ensurdecedor. Em questão de um segundo, antes mesmo que Sara pudesse reagir ao ocorrido, eu já havia detectado a fonte do barulho e, mesmo com as mãos ensaboadas, me tele transportava até o quarto.
A cama vazia comprovava minha suspeita e, ao ver aquele montinho de roupa imóvel no chão, meu coração foi atravessado, pela primeira vez, por uma estaca, produzindo uma dor que só pode ser compreendida por aquelas mulheres que já passaram pela experiência da maternidade.
Corri para juntar minha filha do chão.
Ao ver minha expressão de desastre, Sara, que até então permanecia muda, sem reação, construiu lentamente um beicinho que, de repente, se transformou em um choro desesperado.
Os travesseiros, misteriosamente, permaneciam no mesmo lugar.
Depois de intermináveis segundos Sara parou de chorar, deixando ainda alguns soluços escaparem como demonstração de pesar.
Mas, a despeito de sua aparente superação do ocorrido, arrumei rapidamente sua bolsa com os itens imprescindíveis e me dirigi com ela ao hospital, onde o médico de plantão, sem parecer ter compreendido a gravidade da situação, testou seus reflexos, fez algumas perguntas e nos liberou para voltar para casa, apenas com a determinação de que evitasse que ela dormisse pelas próximas horas.
Segui fielmente a orientação do jovem médico (que eu imaginava que, pela falta de preocupação, não devia ter filhos). Mantive Sara acordada até o anoitecer. E eu, claro, passei toda a madrugada desperta, velando seu sono.

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Ao entrar para a escola as coisas não foram diferentes.
As professoras constantemente me informavam, num misto de admiração e receio que Sara apresentava um desejo por saber que ultrapassava a média de sua idade, transitando, por vezes, entre a indiscrição e a bisbilhotice.
Nada lhe passava despercebido. Nada lhe fugia à observação e nada ela permitia que lhe escapasse ao entendimento.
Quando não recebia dos livros ou das pessoas ao redor uma explicação que lhe convencesse, punha em ação uma de suas principais características: a criatividade. E logo formulava alguma teoria mirabolante que, ao revestir com seu vasto arsenal de palavras (conhecidas ou inventadas) tornava-se irresistível mesmo aos ouvidos mais incrédulos e esquecidos das infinitas possibilidades do universo infantil.
Curiosamente, tal espírito investigativo não lhe proporcionava interesse por passatempos femininos.
Mesmo que eu e as tias da escola tentássemos a toda hora lhe incutir simpatia por bonecas ou joguinhos de chá, Sara se tornava visivelmente entediada quando proibida de acompanhar os meninos em suas aventuras.
Eu estaria resumindo bastante sua personalidade se lhes dissesse que ela parecia um menino.
Longe disso.
Minha filha carregava fortes traços femininos que se manifestaram desde seus primeiros passos.
Era sedutora, ainda que despida de vaidade.
Profundamente envolvente, cativante.
Se não dava atenção aos bebês com que eu lhe presenteava, despendia um cuidado transbordante aos insetos que, mesmo sob meus protestos, teimava em capturar e cuidar, não como filhos, mas como companheiros dignos de respeito e reconhecimento.
As poucas vezes que usou vestido ocorreram quando ainda não continha força (física e argumentativa) suficiente para se livrar do traje que lhe tolhia os movimentos e, portanto, se apresentava como uma ameaça à liberdade.
Logo fui vencida por sua ponderação e desisti de realizar o sonho de trazer sempre a mão uma delicada bonequinha de laços e tranças, apresentada aos demais, com muito orgulho, como minha filha.
Apesar das calças e da completa ausência da cor rosa, o orgulho permaneceu.
Sara era muito esperta. Ao ponto de sustentar uma conversa com pessoas mais velhas e surpreendê-las com seu raciocínio lógico e perspicaz.
Ao ser apresentada a uma nova situação, não se contentava com o óbvio e sempre buscava uma nova perspectiva. Ansiava pelo que ainda não conhecia, portanto não admitia ouvir uma história pela segunda vez ou assistir novamente a um filme.
Tudo precisava ser inédito.
Isso tornava minha tarefa de ser mãe ainda mais desgastante. E, ao mesmo tempo, profundamente compensadora.
Cada dia com Sara representava uma maratona por novas experiências.
Todos os dias ao seu lado eram únicos.


Nos dias que se seguiram o fenômeno das asas ocultas tornou-se a repetir, mas, passado o susto, eu já não me atordoava mais com aquela imagem surreal.
Permiti-me apenas admirar a beleza de um anjo em seu repouso.
Contudo, a familiaridade com aquela visão diminuiu, naturalmente, o entusiasmo que a mesma produzia em mim.
Passado algum tempo, eu, sem ter conseguido ainda captar o sentido de um ser com asas dormindo em minha cama, me senti amedrontada.
Não temia por mim, mas pela própria Sara.
O que seria daquela criança, tão absurdamente normal na maior parte do tempo, se mais alguém descobrisse o seu segredo?
Como ela reagiria quando tomasse consciência de suas asas?
Para que serviriam aquelas asas?
E então, ao ter estes anseios somados àqueles que naturalmente assombram o coração de qualquer mãe, eu constantemente me entregava ao choro.
Deitava ao lado de minha filha e, procurando não fazer muito barulho para não lhe acordar (porque é pecado acordar um bebê, ainda que ele tenha asas) eu transbordava as lágrimas que abasteciam minhas emoções.
Nas primeiras vezes eu tentei reprimir o choro, mas depois acabei me entregando a ele, até como uma estratégia na esperança de me livrar de todas as lágrimas que houvesse acumulado ao longo da vida.
Perda de tempo.
O líquido que jorrava dos meus olhos se multiplicava incessantemente. Eu jamais venceria esta batalha.
Com o passar dos anos, porém, pude observar que o par de membros extraordinários de Sara em nada afetava sua vida. Somente eu conhecia o seu segredo e, nem mesmo ela, nunca, jamais demonstrou por um segundo perceber qualquer anormalidade em si.
Isso foi, aos poucos, me tranquilizando.
Em geral eu mesma esquecia da existência das asas e já não era sempre que, ao vê-la dormir, reparava naqueles elementos extras de seu corpo.
Apenas quando estava relaxada e deitava ao seu lado admirando sua inocência, algumas vezes, eu percebia que elas ainda estavam ali. Ainda faziam parte de sua constituição, como se jamais fossem lhe abandonar.
Eu ainda chorava, porém com mais moderação.
Sentia orgulho por minha filha ser especial.
Mas sentia muito medo por não saber o que a esperava.