Tudo bem. Você tem razão. Eu errei.

Eu acho.

Talvez eu devesse mesmo ter procurado ajuda profissional, devesse ter levado Sara para conversar com alguém que possuísse os atributos necessários para auxiliá-la a domar o espírito rebelde que sempre possuiu.

Provavelmente eu teria que obriga-la a fazer terapia e isso, sem nenhuma chance de erro, renderia boas discussões e alguma revolta, mas, enfim, o profissional capacitado lhe mostraria o caminho correto e nós teríamos sido felizes para sempre.

Acontece que de onde eu venho não se entrega a educação de um filho a um estranho qualquer e nenhum diploma do mundo torna uma pessoa adequada para lidar com alguém mais do que a própria mãe.

Não que as mães sempre entendam os filhos, mas cabe sempre a elas a dolorosa tarefa de, em silêncio, em segredo, analisar as crias, tentar compreender seus anseios, orientar seus caminhos e, principalmente disfarçar da maneira que for necessária suas deformidades de caráter, a ponto de acreditar ter-lhes amoldado até o limite do tolerável.

Talvez você não tenha me compreendido.

Você é mãe?

Não que para entender seja necessário sê-lo. Apenas isso torna tudo bem mais fácil, pois, sendo assim, basta admitir algo que, talvez você venha escondendo de si mesma. E do mundo.

Admita comigo: nossos filhos são perfeitos, fabulosos, admiráveis. Acontece que, em muitos casos, o mundo não está preparado para eles e, então, nós, como mães, somos responsáveis por amenizar os conflitos que terão que enfrentar. Se eles tem algum problema, a culpa é do mundo, dessa sociedade corrompida por valores deturpados. A culpa muitas vezes é nossa por não suportarmos o peso da tarefa de ser mãe e não desenvolvermos com perfeição a obra que nos cabe.

Não é fácil ser mãe.

Principalmente porque a responsabilidade por qualquer desvio no trajeto do sucesso é sempre nossa.

Nunca é deles.

Afinal eles nos são entregues anjos. Doces e completamente vulneráveis aos perigos do mundo e às maldades dessa vida.

Nós somos as culpadas por transformá-los de anjos em homens.

Todos os filhos nascem anjos.

O que eu poderia dizer de Sara, então?

Ela tinha asas.



Eu nem insistia mais para que Sara passasse um batom e também já desistira de comprar-lhe enfeites para o cabelo, pois ela tinha uma caixa cheia destes, alguns ainda com a etiqueta e a grande maioria sem nunca ter saída pela porta.

Sentia-me derrotada, frustrada, vencida pela excentricidade de Sara.

Desistira de preparar-lhe um enxoval e já pensava na aquisição de um cachorrinho para me fazer companhia e preencher meu sonho de netos quando Gustavo mudou-se com a família para o nosso prédio.

Sua mãe me parecia muito simpática e o pai, apesar de simples, demonstrava dar valor ao que era certo.

Tudo bem. Os dois eram bastante jovens. Quem me lê talvez pense que a idade de Sara fosse avançada o suficiente para enfraquecer minha esperança em vê-la casada.

Não era. O que me desestimulava em sonhar era seu comportamento, não sua idade.

Mas a chegada de Gustavo trouxe para mim a sensação de ser tocada por uma agradável brisa no meio de uma tarde de calor infernal.

Em outras palavras: um alívio, uma esperança.

Ele era tão bonito, tão gentil, e me parecia tão inteligente que Sara não poderia resistir.

Além disso, o tom bastante claro de sua pele deixava transparecer o rubor que o dominava sempre que Sara estava por perto.

Claro que eu conhecia aquele sinal. Apesar de fazer muito tempo que não me deparava com nada assim, eu podia apostar que aquele menino estava interessado em Sara.

Era tão fofo.

Sempre educado, procurava disfarçar a excitação ao ver Sara direcionando a atenção para mim. Cumprimentava-me muito sorridente e carregava minhas compras quando nos encontrava-mos na entrada do prédio.

No inicio Sara não demonstrou nenhum sentimento em relação ao novo vizinho, mas, ao perceber as intenções do garoto, que eram cada vez mais evidentes e, principalmente, ao perceber as minhas intenções em relação ao futuro dos dois, ela foi se tornando cada vez mais impaciente e qualquer coisa que viesse do pobre Gustavo passou a irritá-la.



Por insistência minha, Sara até se esforçava em sair de casa algumas vezes com uma outra vizinha nossa, do andar de cima. Uma menina sensível e inteligente o suficiente para prender a atenção de minha filha por alguns momentos.

Daniela também não era grande adepta de voltinhas na praça, mas, talvez pela obstinação que sua mãe compartilhava comigo em ver uma filha adolescente se entregar a programas de adolescentes, vez ou outra batia lá em casa a procura de Sara e conseguia arrancá-la da frente do computador.

Claro que, nestas horas, Sara sempre se despedia de mim com um olhar de quem faz ao outro um grande favor e não se contentava em deixar isto subentendido. Ao voltar para casa me saudava com frases do tipo:

- E aí? Está satisfeita agora?

Ou:

- Pronto, mãe? Perdi uma tarde inteira. Está feliz?

Eu ignorava suas provocações na esperança de perceber em seus olhos um brilho especial na volta de um destes passeios.

Mesmo que a vida tenha me ensinado a não depositar grandes expectativas no amor, eu ainda acreditava que um belo rapaz traria minha filha à normalidade.

Sara não era uma filha má. Nem, tampouco, agressiva.

Talvez eu tenha lhe passado a impressão de que ela fosse estúpida comigo. Desculpe, mas não é nada disso.

Ela apenas tinha um gênio forte e, por isso, não conseguia manter dentro da cabeça os pensamentos. Quando algo a incomodava demais, nem mesmo a educação conseguia conservar sua boca fechada. Ela até se esforçava para dar um ar mais polido às palavras, tornando-as menos agressivas, mas nem sempre obtinha êxito.

E a minha persistência em obrigá-la a se divertir como as outras meninas era algo que a aborrecia demais. Sempre que eu parecia vencer uma batalha e ela cedia a algum programa padrão, Sara se fechava ainda mais em seu mundo extraordinário e me excluía da oportunidade de compartilhá-lo.

Na verdade, ela até fez algumas tentativas de dividir comigo seus interesses, mas, frustrada diante da minha incompreensão perante a importância de impedir a pesca de baleias por japoneses, desistiu.

Eu também, embora não pudesse admitir nem para mim mesma, estava desistindo.

 

 

 



Sara tornou-se uma adolescente um pouco diferente daquilo que é considerado normal. Não pelas asas, que permaneceram ocultas, tornando-se visíveis ainda apenas para mim, durante algumas noites, enquanto ela dormia mais serenamente. Era seu comportamento durante o dia que me intrigava. Eu fingia achar tudo normal. Quando questionada, justificava suas atitudes alegando serem fruto de sua personalidade forte, mas, no fundo, me preocupava observar minha filha manter-se cada vez mais distante de meninas e meninos da sua idade.
Nessa época, sem imaginar o efeito ainda mais devastador que isto causaria, comprei para Sara um computador. Sonhei que ele facilitaria sua comunicação com os colegas e a tornaria um pouco mais semelhante ao resto da turma.
Burrice a minha.
Nem o melhor computador do mundo pode aproximar alguém com asas (ainda que este alguém não tenha, sequer, consciência das mesmas) de adolescentes que se animam em passar a tarde no shopping olhando vitrines e investem tempo em sites que tem como única informação a roupa das estrelas no tapete vermelho.
O tiro saiu pela culatra e Sara aproveitou o computador pra se distanciar ainda mais das pessoas que a cercavam. Inclusive, de mim.
Realmente não posso acusá-la de ser grosseira com as pessoas, pois ela havia absorvido a educação que recebera e tratava a todos com a gentileza necessária. E só.
Sara não demonstrava apego por nada que a rodeava. Nunca telefonava a nenhuma colega de classe ou mantinha diálogos no MSN com os garotos da escola e do bairro. Não se interessava pela vida das vizinhas. Não assistia às novelas. Não ia à igreja. Não fazia parte de nenhum grupo e nem parecia se importar comigo.
Nunca lhe manifestei minha tristeza perante sua indiferença porque temia que isto aumentasse ainda mais a distancia entre nós. Além disso, julgava ser apenas uma fase que se extinguiria a medida que minha filha amadurecesse.
Ao ser apresentada por Tio Chico às mazelas da África, Sara passou a dedicar boa parte de seu tempo a pesquisar informações sobre o assunto na internet e, mais tarde, formulava soluções elaboradas para tal problema. Depois foi a vez da Faixa de Gaza, do Afeganistão, da Geórgia, na região da Ossétia do Sul e até a independência do povo basco na Espanha.
Eu não posso dizer que vibrava com seu interesse por estes assuntos como teria feito ao observá-la descobrir-se apaixonada por qualquer um dos simpáticos garotos de sua turma na escola, mas o tempo me conformou quanto ao comportamento diferenciado de Sara ao ponto de eu passar a considerá-la apenas excêntrica.
Afinal, para quem havia vislumbrado asas em seu pequeno bebê, perceber no mesmo a falta de hábitos condizentes com sua idade não era nada tão absurdo assim.


Se asas são elementos que podem ser cultivados, então nosso carismático vizinho, sem dúvidas, seria considerado um dedicado agricultor, pois com zelo e criatividade regou as asas de minha filha durante o tempo que lhe foi permitido.
Primeiro, ele semeou em Sara o desejo de conhecer o mundo contando-lhe histórias dignas de Sherazade, tal qual um condenado que confia a própria vida ao seu poder de persuadir através de relatos encantadores. Suas narrativas eram sempre ricas em detalhes que, não fosse ele um analfabeto digital, eu juraria provenientes dos mais elaborados tours pelo Google. Afinal, como poderia aquele singelo senhor conhecer detalhes sobre destinos mais antagônicos que a romântica Gramado, no alto da Serra Gaúcha, a caliente Cancun, na costa mexicana, que além do mar azul turquesa oferece aos visitantes os mistérios da civilização Maia ou a anárquica Christiania, território independente no subúrbio da capital dinamarquesa?
Por tudo isso, mais sua paciência e dedicação, ele exercia sobre Sara uma influência cativante, que eu, ao perceber que não possuía armas para competir, acabei utilizando a meu favor. Era Tio Chico que me socorria sempre que minhas palavras não eram satisfatórias para convencer aquela criança de que uma blusa tão curta não era conveniente aos primeiros dias de junho ou qualquer outra coisa, assim como a adolescente que ela se tornou só cedia aos argumentos do vizinho-amigo-ídolo na hora de abaixar o volume do som e dedicar mais algum tempo às apostilas.
Com o tempo desisti do meu ciúme e fiz dele um aliado.
Depois que alguns anos se passaram e a compreensão de Sara cresceu inversamente ao comprimento de suas saias, o cultivador de asas do apartamento ao lado sentiu-se forte o suficiente para aduba-la com ideais em graus mais altos.
A desigualdade entre as classes sociais e todos os males provenientes dela eram seu tema recorrente.
Sara se emocionava profundamente sempre que Tio Chico decidia lhe oferecer descrições das terríveis possibilidades que decorriam da ganância humana. Nestas ocasiões ela comumente sofria de ataques de gastrite ou fortes enxaquecas.
Era impressionante observar como aquela jovem que, na maioria das vezes se mostrava indiferente aos dramas de vizinhas ou amigas, se transmutava em uma ouvinte perturbada diante da descrição de dores tão distantes do seu mundo.
Eu ainda não fazia idéia que a adversidade que dominava suas emoções era efeito colateral de suas asas, pois estas a obrigavam a sentir as injustiças sofridas pelos homens como facas em sua alma.


Quando chegou a hora de Sara entrar para a escola eu me senti plenamente segura em matriculá-la em um colégio que valorizasse a educação cristã, afinal esta era uma questão que me preocupava desde o seu nascimento.
Eu não era dada a freqüentar igrejas e os anos haviam apagado as lembranças de orações que me foram tão caras na infância. Para ser sincera, a religião não fazia parte da minha vida embora ainda permeasse meus temores.
Não me parecia certo que uma criança pudesse crescer sem a inserção de valores religiosos, ainda que a um adulto fosse perfeitamente possível viver distante dos mesmos. Eu realmente acreditava que devia oportunizar a Sara o aprendizado das histórias de Cristo, pois, somente assim, ela seria capaz de fazer escolhas corretas em sua vida adulta.
Isso, para mim, estava muito claro.
Se você já ouviu falar que “os vizinhos são os nossos parentes mais próximos”, talvez entenda como Tio Chico acabou sendo envolvido (na verdade, se envolvendo) na questão da ida de Sara à escola.
Eu já havia feito uma primeira visita ao Colégio Santo Antonio dos Anjos e, numa noite, quando meu vizinho bateu à porta para nos oferecer um pedaço de queijo colonial com o qual um amigo o presenteara, estava com a documentação necessária para a matrícula espalhada sobre a mesa, o que, naturalmente, lhe chamou a atenção.
Talvez por se sentir um pouco responsável pela educação de sua pequena companheira de histórias, Tio Chico se permitiu uma indiscrição (coisa que lhe era incomum) e me questionou sobre a escolha da instituição religiosa de ensino.
Dei-lhe todas as devidas explicações com certo ar de satisfação, pois me sentia plenamente segura quanto à escolha.
Ele me pediu licença, puxou uma cadeira da pequena mesa que ficava na sala, sentou-se e me pediu que fizesse o mesmo.
Desculpou-se pela intromissão e passou a hora seguinte argumentando sobre o caso.
Segundo ele, Sara precisava crescer exposta a valores morais rígidos, porem razoáveis. Para a formação de seu caráter era imprescindível o contato com questões éticas bem definidas. Ela precisava de orientação quanto a bons costumes e aspectos saudáveis de seu desenvolvimento.
Sara precisava aprender o que era certo e o que era errado, mas não tinha necessidade de ser exposta a um conjunto de crenças antes mesmo que pudesse compreender seu significado.
Tio Chico me fez enxergar que, para ser uma boa mãe, para desempenhar o meu papel no desenvolvimento de sua personalidade, eu deveria apenas me incumbir de orientar sua conduta entre o bem e o mal (ainda que esta distinção não fosse sempre muito clara), deixando para mais tarde suas escolhas religiosas, que aflorariam melhor se livres de qualquer preconceito.
Foi assim que dispensei a vaga no conceituado colégio cristão e matriculei minha filha em uma escola sem nenhuma orientação religiosa.


A carência de pai foi suprida por uma figura apaixonante que surgiu em nossas vidas quase como um presente que alguém deixa à porta.
Tio Chico era um senhor que aparentava ter uns 60 e poucos anos, embora nunca nos tenha revelado sua verdadeira idade.
Mudou-se para o apartamento ao lado quando Sara estava prestes a completar 5 anos. Bem a tempo de me salvar de sua curiosidade que vinha crescendo e me surpreendendo tal qual um rolo compressor.
Ao perceber meu aborrecimento diante de algumas de suas intermináveis dúvidas e suposições, Sara passou a direcionar a Tio Chico a maioria de suas perguntas, com exceção daquelas que diziam respeito apenas às mulheres e ela, instintivamente, preferia que fossem esclarecidas por mim.
E o nosso sábio e experiente vizinho nunca a decepcionava. Tratava a todos os questionamentos de Sara com respeito e seriedade. Fosse uma pergunta sobre o Lobo Mau (que ela nunca admitiu ter engolido a Vovozinha sem mastigar, a tolerando viva em sua barriga), fosse sobre a crise no Oriente Médio (que os jornais noticiavam incessantemente) ou sobre o fenômeno físico que transformava a água em gelo, lhe permitindo voltar a ser água, Tio Chico brindava à sua pequena ouvinte com uma explicação perfeitamente aceitável para sua idade, nunca estando aquém de sua compreensão.
Foi ele quem explicou para Sara quem havia sido aquele homem cuja face estampada em um quadro enfeitava a parede de nosso apartamento e a expressão, embora endurecida pela barba espessa, irradiava a possibilidade da realização do sonho de um mundo mais justo.
Foi ele quem lhe ensinou que, apesar de que em alguns lugares do mundo às mulheres só fosse permitido andar às sombras dos homens, todos são exatamente iguais, mesmo que alguns vistam roupas melhores e tenham mais oportunidades.
Foi ele quem lhe mostrou que a cor de um ser humano não faz dele alguém mais, ou menos, especial.
Acredito que, se Tio Chico não tivesse cruzado nossos caminhos, eu talvez desse conta de passar para minha filha a importância destes mesmos valores.
Mas a necessidade de dedicar à luta diária por meios que permitissem nosso sustento grande parte de minha energia, afetava negativamente meu humor e, confesso, muito provavelmente privaria Sara de explicações tão ricas e profundamente positivas na construção de sua personalidade.
Foi Tio Chico, inclusive, quem lhe incutiu a necessidade de buscar em sua essência aquilo que, de fato, lhe fosse importante e, então, dedicar a vida a realizar tal objetivo.
Eu sentia certo ciúme ao perceber o fortalecimento daquela relação.
Afinal, por mais carismático e inteligente que fosse o senhor da porta ao lado era praticamente um estranho. Pouco sabíamos sobre sua vida, além de que perdera a esposa devido a um câncer e não tinha filhos.
Quando perguntávamos sobre sua profissão, Tio Chico nos mandava escolher a que preferíssemos, e se divertia ao explicar que já havia realizado quase todos os trabalhos possíveis nesta vida.
Aquilo encantava Sara ainda mais, exatamente na mesma medida que começava a me afligir.