Foi ao chegarmos em casa, logo na primeira noite, que percebi aquilo que pelo resto de meus dias seria para mim razão de encanto e tormento, simultaneamente.
A kitinete abandonada desde o rompimento da bolsa d'água não era exatamente aquilo que se pode chamar de "ambiente acolhedor" para um bebê. Mas Sara parecia não se importar e eu, tampouco.
Após alguns dias tendo como lar, hora o gélido corredor do hospital, hora o interior nada confortável de um carro popular, eu me senti cruzando as portas do paraíso ao rever aquelas paredes brancas, levemente encardidas pela ação do tempo, abarrotadas de figuras que, se não importavam em nenhum valor econômico, mas narravam fielmente uma parte considerável da minha história.
Sara não demonstrou nenhuma reação de ter percebido, naquele primeiro instante, a disparidade exposta em figuras como Audrey Hepburn - elegantemente adornada como "Bonequinha de Luxo" - e o revolucionário Che Guevara acomodados lado a lado em uma incômoda harmonia.
Mas, sem dúvida, os anos de convívio forçado com a mãe, a que toda criança (em situação padrão) é submetida, seriam suficientes para que ela elaborasse sua própria teoria sobre a rebeldia que eu vinha tentando, com certo sucesso, domar desde meus primeiros anos de vida.
Agora eu preciso lhe esclarecer que, se exponho aqui aspectos tão íntimos de minha própria existência, não é por vaidade, nem orgulho ou mesmo por necessidade da absolvição alheia. Faço isso apenas pela importância que a consciência desta minha batalha emocional gerou em Sara.
Mas, tenha paciência, pois chegará a hora de falarmos sobre este assunto.
Voltemos ao pequeno apartamento e, por favor, não se assuste e nem mesmo me condene, mas preciso confessar que ali não havia absolutamente nada que denunciasse a espera por uma criança.
Talvez pelo espaço reduzido ou mesmo pela desorganização que sempre me acompanhou, os mais variados objetos, representassem eles algum perigo ou não, permaneciam espalhados pelo chão ou amontoados sobre a mesinha de centro entre o sofá e a TV.
E o único quarto do imóvel se resumia a um guarda-roupas mais forte do que bonito e uma cama de casal bastante simples, mas valorizada por um confortável colchão.
Não poderia lhe afirmar com sinceridade que a ausência dos objetos fundamentais ao desenvolvimento de um bebê era resultado da falta de espaço da minha casa. Como eu já lhe confessei, realmente não estava preparada para me separar de Sara. A simples idéia de tê-la arrancada do meu ventre representava para mim uma agressão que me privava de qualquer vontade de preparar sua chegada ao universo exterior.
Mas naquele instante, ao abrir a porta por de traz do número 204 do antigo edifício em frente à praça, e observar meus velhos ídolos cumprimentando a mim e a filha que eu trazia embrulhada ao colo, fui invadida pela certeza de que nem a beleza representada por Audrey, nem a luta por ideais revolucionários impressa na figura de Che, jamais teriam um lugar tão destacado em minha vida quanto aquele frágil ser que recheava a recém comprada manta que eu verdadeiramente lamentava não estar impregnada por histórias que remontam a várias gerações.
Só então pude sentir falta da tradição que invade a todas as famílias, tenham elas consciência ou não.
Apenas naquele momento, quando Sara deixava de fazer parte de mim para pertencer ao mundo lamentei profundamente ter abdicado - há muitos anos - da convivência familiar, assim como de suas memórias, para seguir em busca de algo que eu jamais soubera identificar.
Mas Sara estava ali e eu já não precisava procurar por mais nada.


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